quarta-feira, 14 de abril de 2010

Tensão Harmônica

Por Makely Ka*

Recentemente uma pesquisa divulgada pela ONU apontou a capital de Minas como uma das cidades com a maior desigualdade social do mundo. Para quem vive em Belo Horizonte isso pode não ser óbvio, mas tampouco é uma surpresa. Nesse ambiente de tensão constante a cultura é um espaço de interlocução entre as diferenças e a música uma possibilidade de convívio, senão harmônico, pelo menos intenso. Sem dúvida, uma característica peculiar da música produzida em Minas hoje é a capacidade de promover o encontro dos contrários de uma forma espontânea, não-programática. Talvez seja um artifício inconsciente e coletivo de sobrevivência, mas o fato, que pode ser observado tanto nas formações dos grupos, nas fichas técnicas dos discos, no público que freqüenta os shows, é que não há uma divisão rígida das tribos urbanas identificadas com estilos e gêneros musicais específicos que se verifica na maioria das grandes metrópoles.

O fato é  que você encontra facilmente os manos e as minas do Hip Hop colaborando com os mestres de cultura popular, os virtuoses da música instrumental tocando nas rodas de samba, os alternativos do rock discutindo política pública com o pessoal da MPB mais tradicional, ou ainda os acadêmicos da música erudita nas baladas de música eletrônica. Há uma promiscuidade social na música produzida por essa nova geração que contesta com uma carga de generosidade positiva os dados da pesquisa da ONU em um sentido amplo e profundo. Talvez essa promiscuidade musical seja resultado da falta de um sentimento de pertencimento arraigado a um grupo social. Muitos acreditam ainda que seja conseqüência do isolamento panorâmico interposto pelas montanhas. Eu acredito que seja simplesmente uma pré-disposição para a troca, para o câmbio.

Belo Horizonte é uma grande cidade do interior. As tradições são recentes e muitas vezes foram trazidas de fora, o que muitas vezes quer dizer de dentro do próprio estado. Isso gera, mesmo numa cidade com quatro milhões de habitantes, uma tendência à aproximação, uma certa intimidade natural nos relacionamentos. As pessoas ainda se cumprimentam em determinados ambientes, principalmente nos espaços culturais, mesmo sem se conhecerem, como no interior.

Coincidência ou não, Minas possui provavelmente a cena musical autoral mais efervescente do país, com uma produção tão prolífica quanto diversificada, preenchendo um espectro muito largo de estilos, gêneros e tendências. A harmonia, ou a falta dela, é sempre um elemento de referência nessa produção, muitas vezes como contraponto ou diálogo cruzado com uma tradição recente. A música, por sua vez, integra outras artes como a dança, o teatro, o audiovisual, a literatura. Em Minas essas colaborações transversais se multiplicam e as linguagens se retro-alimentam num processo cada vez mais vertiginoso e necessário para sua dinâmica de funcionamento. É que as pessoas entenderam que para ter autonomia precisam trabalhar coletivamente, e que a rede social fundamenta e dá sentido ao ato criativo, muitas vezes solitário. Prova de que o arco das artes está tensionado tanto quanto o das relações sociais, mas aponta para outros alvos.

*Makely Ka é poeta e compositor. Publicou os livros de poemas: Objeto Livro (1998) e Ego Excêntrico (2003). Lançou os CDs A Outra Cidade (2003), Danaide (2006) e Autófago (2007). Edita a Revista de Autofagia. Tem mais de 60 composições gravadas por nomes como Titane, Alda Rezende, Ná Ozzetti, Suzana Salles, Maísa Moura e Aline Calixto, entre outras. É um dos fundadores e atual presidente da COMUM (Cooperativa da Música de Minas) e representante de Minas no Colegiado Setorial da Música do Ministério da Cultura.

Um comentário:

  1. Trabalho a mais de 10 anos com a transversalidade da arte. Não só por uma questão natural, atávica com cinema, ou por minha música ser bastante descritiva ou exercer outras artes, como artes plásticas. Mas por uma absurda necessidade de sobreviver, como foi bem colocado neste texto. Hoje posso dizer que sou um artista multimídia(termo ultrapassado)devido a tantos projetos realizados neste campo de interseção. E se não fosse por eles não consigo projetar minha sobrevivência nesta cidade que realmente é grande em pessoas, mas extremamente desigual, onde o extremo refinamento resvala e suporta curralismos e desinteresses que segregam e que no fim das contas prefiro chamar de tudo de “má vontade”. É bem curioso, hoje, fora o mundo prosaico, sou ouvido e apreciado entre os cineastas, poetas, dramaturgos daqui. Entre os músicos, não sei. Entre os gestores, com certeza que não. Mas sobrevivo e cada vez mais vivo .
    Sem trocadilhos.

    Gilberto Mauro.

    ResponderExcluir